quinta-feira, 28 de maio de 2015

Fotografia


Porque seu pé direito é maior que o esquerdo.
Por todas as sutis assimetrias do seu corpo.
Porque não sei se os seus olhos são de índio ou de japonês.
Você sorri com eles e com as sardas que ficam mais assanhadas após o sol
(e pisca em todas as fotografias).

Porque gosta de cores e estampas exóticas,
de cachos saindo dos turbantes ou bagunçados pelo vento
e parece despreocupada ao caminhar.
Porque, apesar de sua discrição,
não consegue chegar a lugar algum sem ser notada.
Por associar pessoas a músicas, sabores e cheiros,
por buscar abrigo em canções, amigos e nos aromas terrosos das especiarias.

Porque você topa fazer quase qualquer coisa que seja diferente e difícil
- uma careta, um texto científico ou uma posição de yôga.
Porque você se expõe, erra e ri de si mesma
e porque você sangra,
eu estou apaixonada.


domingo, 10 de maio de 2015

Sobre ser mãe


Ser mãe é: aparentar normalidade quando o brinquedo do parque te dá medo.
Ser mãe não tem nada a ver com glamour. Nem com um ideal romântico específico de um gênero. Ser mãe é missão e trabalho pesado, "trabalho sujo".

É comer o que o filho não quis. É limpar o vômito de leite do filho no trocador, enquanto ele emite um potente jato de cocô na parede branca. É esfregar com força a roupa suja de todos os tipos de "barro". Esfregar o colchão para tirar o cheiro do xixi e dar um jeito para que esteja seco à noite. É deixar-se ser mijada com o filho no colo quando a fralda não foi bem colocada. É não ter nojo de catarro, ferida e chulé.

É dominar a arte de amamentar dormindo e ter olhos em todos os cantos da casa. Ter ouvidos supersônicos e, ao mesmo tempo, desmaiar em sono de pedra. É tentar convencer o filho, com monossílabos incompreensíveis, a tomar seu leitinho morno com chocolate quando amanhecer, e não às três da manhã (e levantar para preparar o leite).

É colher as pérolas proferidas pelo filho e rir sozinha lembrando delas. É pegá-lo em flagrante no meio da travessura e, tendo que corrigi-lo, fazer milhares de caretas e contorções para não cair na gargalhada.

É, no início, querer fazer um escarcéu quando o filho chega da escola com algum hematoma. É acostumar-se a isso e dizer: "defenda-se!". É querer rir e não poder quando a professora conta alguma traquinagem dele na escola. É também ficar fula da vida em ter que repetir, repetir, repetir. E, mesmo assim, com amor, repetir sempre.

É guardar todos os desenhos e lembrancinhas. E chorar como criança nas homenagens da escola.

Ser mãe é respeitar a dor do filho e permitir que ele a viva. É proteger sem impedir a frustração. É ensinar tudo, inclusive limites. É estar em exercício constante de desapego.

Ser mãe é ser ninja, rocha e pamonha derretida ao mesmo tempo.

 É perceber-se instrumento de um milagre.

sábado, 29 de novembro de 2014

Entra em beco, sai em beco: de quando algo nos escolhe


Tio Pedro

Tenho a pretensão de muitas vezes sentir que estou escolhendo o filme a que assito, o livro que leio, a música que ouço. Ajo, sim, mas não sozinha; ajo em comunhão com uma série de conexões do acaso (ah, essa coisa linda chamada acaso). Muitas coisas a escrever sobre isso. Como quero fazê-lo lentamente - prolongar esse prazer -, deixo aqui apenas a última ocorrência. :)

Ontem estava eu em um sarau muito agradável. Não conhecia ninguém a não ser meu amigo - aquele que uma vez me contou sobre o seu silêncio dos gorilas em Ruanda -, que, por sinal, não havia chegado. Tirei timidamente meu violino do estojo, comecei a ensaiar algumas melodias improvisadas sobre as canções que o grupo entoava. Assim foi fluindo até que me sentisse muito à vontade e compartilhando com todos o grande prazer que é fazer música despretensiosamente.

Até que os músicos dispersaram, foram comer, conversar. Alguém sugeriu colocar um som mecânico naquele intervalo. A anfitriã foi escolher o disco, enquanto estávamos na rede. Introdução da música. Não reconheci. Até que Gilberto Gil começa a cantar: "fui passear na roça, encontrei Madalena...". Arrepio da cabeça aos pés. A música que há mais de 20 anos eu não ouvia. Aquela que eu conhecia somente pela voz do tio Pedro, que partira há quase 19 anos de forma trágica. Um sorriso e uma saudade enormes, e eu comecei a cantar os versos que passadas duas décadas eu conhecia inteiros. E o tio Pedro ali comigo, naquele momento e lugar de prazer, conversa, comilança e gentes alegres - daqueles lugares onde se podia encontrá-lo. Um dia antes do sarau, sua imagem jovial de despojado charme ao violão havia sido compartilhada por minha prima (filha dele) na internet.

Guardo o disco de vinil que ele gravou com muito zelo. Suas músicas e trejeitos "a Caetano". Seu sonho de ser cantor. As brincadeiras conosco ao violão. Que coisa linda eram as tardes, noites, dias de festa ou qualquer dia em sua companhia. Ontem eu pude desfrutar de forma especial um pouquinho dela.

Epifania musical. Uma de tantas e a mais intensa em muito tempo. E pensar que isso acontece o tempo todo - basta que esteja atenta.




segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Correspondências


Hoje eu enviaria cartas. À amiga saudosa que vou encontrar no final de semana. À vizinha gentil que mudou o corte de cabelo. Ao colega de sala com quem nunca troquei palavra. Ao senhorzinho cinéfilo que conheci numa festa pomposa. Àqueles que foram crianças antes e depois de mim. A quem não conheço e talvez nem exista.

Poderia também enviar flores. Secas, com a lembrança de um perfume distante. Em selos de antigas coleções, como uma mera ilustração do meu parco conhecimento de botânica.

Prefiro enviá-las úmidas, dentro da carta dobrada, para colorir e multiplicar as vidas pulsantes dentro dos envelopes.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Romper os muros

Medo é igual castanha-do-pará: na dose certa é super saudável, mas na errada te leva à morte.
Lembro do medo que senti quando, ao atravessar o Rio Araguaia voltando de um passeio em família, a canoa começou a afundar com isopor, panelas, cachorro, minha vó... Eu estava sem colete salva-vidas (imprudência das grandes) e no bico da canoa, que foi a primeira parte a afundar, justamente no canal, o trecho mais profundo do rio. Sem pensar muito, pulei da canoa, nadei até o concreto depois do canal e esperei até algum pescador me puxar para fora da água. Quando eu olhei pro rio, minha família inteira boiava, cada um segurando uma coisa, e a minha mãe... agarrada na coleira do poodle. Morro de rir sozinha quando lembro dessa cena (apesar de na hora não ter tido muita graça, rs). O medo me fez sair da canoa, nadar, chegar primeiro e assistir àquele festival de pessoas boiando. Mas eu também poderia ter ficado na canoa e afundado no medo e no rio.

Lembro de umas histórias que minhas tias da Bahia contavam sobre os valentões que morriam nos remansos do Rio Corrente. Cada uma mais escabrosa que a outra. Eles não tinham medo de nada; logo, morriam afogados, enquanto os que tinham medo de entrar no rio, morriam de tédio. Eu tentava estar ali, no meio-termo, administrando o medo de modo que pudesse entrar no rio mas também sair viva dele.

A máxima que diz que o medo de tentar é pior que o fracasso já é consagrada. Mas muita gente não liga não. Quer viver sua vida sem aventura, no seu escritório organizado, seu círculo restrito de amizades, seus programas semanalmente premeditados. "Se você é feliz assim", diria eu, mas não direi. Porque pessoas assim, desse jeito que em certa medida já fui, não têm como ser felizes, porque se arrependem. "Zona de conforto é zona de perigo", digo eu em qualquer circunstância, inclusive em meus perfis em redes sociais. Isso alimenta a minha vontade de conhecer gentes, países, culturas, comidas, experiências diferentes.

Esses dias deixei pra trás meu medo do ridículo. Que experiência libertadora. Fui pra balada com o marido toda comportadinha, cantei uma musiquinha no karaokê toda tímida (ganhei como prêmio um caderno de atividades da Turma da Mônica) e a metamorfose aconteceu quando o DJ começou a tocar as piores músicas dos anos 90. Um rapaz obeso, que decerto era o animador da casa, subiu no palco e começou a fazer to-das as coreôs, de Planeta Xuxa a TV Colosso, passando por Dominó, Kátia e outras pérolas. Como nós admiramos aquele moço - que mais pro fim da noite estava vestido de Angélica, fazendo uma performance de "Vou de táxi". Quando me dei conta, estava dançando o tema de Maria do Bairro (aquela novela mexicana "ma-ra-vi-lho-sa" estrelada pela Thalia) ao lado do admirável rapaz, e depois Macarena, e depois o pagode do Grupo Molejo. Acho que meu marido nunca se divertiu tanto comigo em uma balada. Acho que eu nunca me diverti tanto comigo mesma.

Destravemos as nossas existências! Percamos o medo do ridículo, de se aproximar, de conhecer!
Vamos romper os nossos Muros de Berlim! 

A performance de "Vou de táxi" que me fez virar fã desse rapaz.
Procurei-o na saída pra dizer que ele era mil vezes melhor que a Angélica.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Do mundo, "que lua" :)

Caminhando numa praia em Lagos, Portugal, há oito anos.


Ao notar que eu estava na estrada de novo, uma amiga comentou que ultimamente eu andava muito "do mundo". Gostei desse trocadilho acidental. Porque a experiência dessas andanças nunca foi tão espiritual. Corpo e alma se entrelaçam. O encontro consigo mesmo te abre para o encontro com o Outro. E é assim que sempre quero sentir. Aberta. Atenta. E grata.

Já que a maior distância a percorrer é a de dentro.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O silêncio dos gorilas




Café da manhã com um amigo. Depois de alguns goles de chá, ele quebra o silêncio e diz: "Geórgia, vou te contar sobre o silêncio mais lindo da minha vida". Assim como a manteiga no brioche, meu coração simplesmente derreteu (porque confiar e ouvir sobre silêncio é tarefa delicada e especial).

Lá estava ele, há dez anos, com seu gravador e sua câmera, entre um grupo de pesquisadores e turistas que se dirigiam a um lugar onde viviam os gorilas em Ruanda. Durante o trajeto, o guia apresentava as recomendações, entre as quais manter uma distância mínima de seis metros daqueles animais majetosos, lindos e gigantes. Todos na van estavam eufóricos, talvez não tanto quanto os gorilas jovens, ele me disse. Os filhotes brincavam muito, enquanto os adultos, simplesmente se davam à vista em sua serenidade e mistério. Após a sua experiência única com os gorilas de Ruanda, ele, assim como todos, retornou à van no fim do dia. Mas a euforia inicial fora substituída por um profundo silêncio.

Abaixei a cabeça para beber meu chá já frio e disfarçar os olhos marejados. E agradeci em silêncio o presente que fora ouvir aquela história.

Comentei sobre "o silêncio dos gorilas" com a minha kalyanamitra ("amiga espiritual", em sânscrito), que fui visitar há alguns dias. E em cada pausa do meu relato daquele relato sentia que eu também buscava um silêncio dos gorilas para chamar de meu. Em mim, naquela pequena viagem, nos livros, gestos, paisagens percorridas e imaginadas. Havia acabado de chegar, depois da noite mal dormida no ônibus.

- Amanhã estamos programando um stand up. Não fosse isso a gente podia subir a Pedra da Gávea hoje...
- A gente pode subir a Pedra da Gávea hoje e ir pro stand up amanhã, oras. - disse eu, na minha completa ignorância do que era a Pedra da Gávea e o tal stand up.
- Então vamos!!!! - depois eu entendi o entusiasmo dela.

Fomos à casa dela para nos preparar para subir a Pedra. No caminho, ela me falava de um de seus professores de teatro, o Lolô, cujos exercícios levavam os alunos à exaustão física e a uma interpretação entregue. "Vai coçar, vai doer, vocês vão querer parar. Quando isso acontecer, aí é que vocês precisam continuar". Inevitável associá-lo ao meu lado "esforçado". Esforço demais, energia demais, eu precisava desapegar disso para alcançar a leveza. Precisava me livrar do meu próprio Lolô. E ela, que era leve demais, precisava do Lolô com ela. E a gente se divertia com a nossa sintonia às avessas.

Ela me levou para a Pedra da Gávea com uma outra conhecida. Meu entusiasmo era do tamanho da minha vontade de estar em silêncio (ela entendia), mas o alto astral da nossa companheira só podia ser expresso em palavras, muitas. O esforço físico da trilha me fez abstrair e focar na respiração, no ritmo do passo, nas raízes, terra e pedras que se tornavam cada vez mais íngremes e irregulares. Quando chegamos à carrasqueira, eu pensei ter atingido meu limite. Ela via degraus onde eu via pedras lisas a quase 90 graus. O esforço agora era físico e mental. Não me lembro de ter sentido um medo tão grande de algo que realmente pudesse me matar. Para pisar nas pequenas fendas das pedras, eu precisava estar descalça, tinha que necessariamente olhar para baixo e para cima, usar força e peso com inteligência. E acreditar. Minha kalyanamitra não me deixou desistir. Depois de alguns minutos (podem ter sido dez... ou trinta), "com a força de Lolô" e a ajuda dela, consegui subir. Fui a terceira a chegar ao topo da Pedra.

No topo da Pedra da Gávea


O primeiro movimento do meu silêncio dos gorilas foi ali. No topo da Pedra, aquela paisagem incrível do Rio de Janeiro me fez esquecer o medo, a iminência das cãibras, as pernas raladas, a pele queimada e sensível de mãos e pés no contato com as pedras. De longe, foi a coisa mais difícil que consegui realizar em toda a minha existência até aqui. Deitei na pedra longe das meninas, sob o sol das duas horas da tarde (tavez), e me permiti algumas poucas lágrimas em silêncio. Era dor e contentamento. Era a minha despedida de Lolô, daquele esforço imenso em sua história e diverso em seus motivos.

O segundo movimento aconteceu quando ela me mostrou a "sua" pedra. Do outro lado do topo, havia uma pedra pontuda, a mais alta, que depois de tudo aquilo eu só queria contemplar de longe. Ela mostrou como se subia e como se descia, subiu, desceu, subiu e lá ficou. E vendo-a lá em cima, com seu cabelão ao vento tão adequado àquele azul, eu só podia existir em gratidão.

Depois de uma descida muito difícil (possível também graças a dois "anjos da guarda" que estavam lá em cima quando chegamos e desceram conosco), com a floresta acordando ao cair do sol, sem Lolô, com muitas palavras, pouca paciência e músculos que não respondiam ao mais simples comando de "não tremer", fomos almoçar. Eram quase oito da noite.

O terceiro movimento do silêncio dos gorilas aconteceu no retorno para casa, tal como na história do meu amigo em Ruanda. Estava sentada entre a minha amiga e a nossa "alegre companheira das palavras". Elas conversavam sobre a experiência na pedra, perfis astrológicos e outras coisas de que não me recordo. Eu só conseguia olhar pra frente, fixamente, até que meus olhos se fechassem, tal como a minha bolha escandalosa de silêncio.

O Lolô, esse não voltará. Deixei no topo da Pedra. Ela já deve ter voltado lá pra pegá-lo pra si.