sábado, 29 de novembro de 2014

Entra em beco, sai em beco: de quando algo nos escolhe


Tio Pedro

Tenho a pretensão de muitas vezes sentir que estou escolhendo o filme a que assito, o livro que leio, a música que ouço. Ajo, sim, mas não sozinha; ajo em comunhão com uma série de conexões do acaso (ah, essa coisa linda chamada acaso). Muitas coisas a escrever sobre isso. Como quero fazê-lo lentamente - prolongar esse prazer -, deixo aqui apenas a última ocorrência. :)

Ontem estava eu em um sarau muito agradável. Não conhecia ninguém a não ser meu amigo - aquele que uma vez me contou sobre o seu silêncio dos gorilas em Ruanda -, que, por sinal, não havia chegado. Tirei timidamente meu violino do estojo, comecei a ensaiar algumas melodias improvisadas sobre as canções que o grupo entoava. Assim foi fluindo até que me sentisse muito à vontade e compartilhando com todos o grande prazer que é fazer música despretensiosamente.

Até que os músicos dispersaram, foram comer, conversar. Alguém sugeriu colocar um som mecânico naquele intervalo. A anfitriã foi escolher o disco, enquanto estávamos na rede. Introdução da música. Não reconheci. Até que Gilberto Gil começa a cantar: "fui passear na roça, encontrei Madalena...". Arrepio da cabeça aos pés. A música que há mais de 20 anos eu não ouvia. Aquela que eu conhecia somente pela voz do tio Pedro, que partira há quase 19 anos de forma trágica. Um sorriso e uma saudade enormes, e eu comecei a cantar os versos que passadas duas décadas eu conhecia inteiros. E o tio Pedro ali comigo, naquele momento e lugar de prazer, conversa, comilança e gentes alegres - daqueles lugares onde se podia encontrá-lo. Um dia antes do sarau, sua imagem jovial de despojado charme ao violão havia sido compartilhada por minha prima (filha dele) na internet.

Guardo o disco de vinil que ele gravou com muito zelo. Suas músicas e trejeitos "a Caetano". Seu sonho de ser cantor. As brincadeiras conosco ao violão. Que coisa linda eram as tardes, noites, dias de festa ou qualquer dia em sua companhia. Ontem eu pude desfrutar de forma especial um pouquinho dela.

Epifania musical. Uma de tantas e a mais intensa em muito tempo. E pensar que isso acontece o tempo todo - basta que esteja atenta.




segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Correspondências


Hoje eu enviaria cartas. À amiga saudosa que vou encontrar no final de semana. À vizinha gentil que mudou o corte de cabelo. Ao colega de sala com quem nunca troquei palavra. Ao senhorzinho cinéfilo que conheci numa festa pomposa. Àqueles que foram crianças antes e depois de mim. A quem não conheço e talvez nem exista.

Poderia também enviar flores. Secas, com a lembrança de um perfume distante. Em selos de antigas coleções, como uma mera ilustração do meu parco conhecimento de botânica.

Prefiro enviá-las úmidas, dentro da carta dobrada, para colorir e multiplicar as vidas pulsantes dentro dos envelopes.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Romper os muros

Medo é igual castanha-do-pará: na dose certa é super saudável, mas na errada te leva à morte.
Lembro do medo que senti quando, ao atravessar o Rio Araguaia voltando de um passeio em família, a canoa começou a afundar com isopor, panelas, cachorro, minha vó... Eu estava sem colete salva-vidas (imprudência das grandes) e no bico da canoa, que foi a primeira parte a afundar, justamente no canal, o trecho mais profundo do rio. Sem pensar muito, pulei da canoa, nadei até o concreto depois do canal e esperei até algum pescador me puxar para fora da água. Quando eu olhei pro rio, minha família inteira boiava, cada um segurando uma coisa, e a minha mãe... agarrada na coleira do poodle. Morro de rir sozinha quando lembro dessa cena (apesar de na hora não ter tido muita graça, rs). O medo me fez sair da canoa, nadar, chegar primeiro e assistir àquele festival de pessoas boiando. Mas eu também poderia ter ficado na canoa e afundado no medo e no rio.

Lembro de umas histórias que minhas tias da Bahia contavam sobre os valentões que morriam nos remansos do Rio Corrente. Cada uma mais escabrosa que a outra. Eles não tinham medo de nada; logo, morriam afogados, enquanto os que tinham medo de entrar no rio, morriam de tédio. Eu tentava estar ali, no meio-termo, administrando o medo de modo que pudesse entrar no rio mas também sair viva dele.

A máxima que diz que o medo de tentar é pior que o fracasso já é consagrada. Mas muita gente não liga não. Quer viver sua vida sem aventura, no seu escritório organizado, seu círculo restrito de amizades, seus programas semanalmente premeditados. "Se você é feliz assim", diria eu, mas não direi. Porque pessoas assim, desse jeito que em certa medida já fui, não têm como ser felizes, porque se arrependem. "Zona de conforto é zona de perigo", digo eu em qualquer circunstância, inclusive em meus perfis em redes sociais. Isso alimenta a minha vontade de conhecer gentes, países, culturas, comidas, experiências diferentes.

Esses dias deixei pra trás meu medo do ridículo. Que experiência libertadora. Fui pra balada com o marido toda comportadinha, cantei uma musiquinha no karaokê toda tímida (ganhei como prêmio um caderno de atividades da Turma da Mônica) e a metamorfose aconteceu quando o DJ começou a tocar as piores músicas dos anos 90. Um rapaz obeso, que decerto era o animador da casa, subiu no palco e começou a fazer to-das as coreôs, de Planeta Xuxa a TV Colosso, passando por Dominó, Kátia e outras pérolas. Como nós admiramos aquele moço - que mais pro fim da noite estava vestido de Angélica, fazendo uma performance de "Vou de táxi". Quando me dei conta, estava dançando o tema de Maria do Bairro (aquela novela mexicana "ma-ra-vi-lho-sa" estrelada pela Thalia) ao lado do admirável rapaz, e depois Macarena, e depois o pagode do Grupo Molejo. Acho que meu marido nunca se divertiu tanto comigo em uma balada. Acho que eu nunca me diverti tanto comigo mesma.

Destravemos as nossas existências! Percamos o medo do ridículo, de se aproximar, de conhecer!
Vamos romper os nossos Muros de Berlim! 

A performance de "Vou de táxi" que me fez virar fã desse rapaz.
Procurei-o na saída pra dizer que ele era mil vezes melhor que a Angélica.